quinta-feira, 31 de maio de 2012

Devaneios sobre a reforma do Código Penal - Dra Vanice Teixeira Orlandi

Nas últimas semanas várias matérias divulgadas nas mídias faladas e escritas, além das redes sociais noticiaram que quem maltratar e matar animais no Brasil, após a reforma do novo código penal que está sendo elaborada neste momento, ficaria preso. Nossas listas de emails também foram invadidas com esta notícia. Mas isto não procede. Estamos comemorando algo que não tem chance de vir a acontecer, pois a expectativa gerada por essas divulgações serão a da mais pura decepção!!!
Gostaria de dividir com voces o excelente texto de uma das mais tarimbadas especialistas em Direito Animal de nosso país a Dra Vanice Orlandi, presidente da UIPA/SP e colaboradora em várias leis de proteção animal conhecida por todos nós. É dela a autoria do art. 32 da lei de Crimes Ambientais a 9605/98.

                                Devaneios sobre a reforma do Código Penal
Vanice Teixeira Orlandi

Alardeia-se que o texto do anteprojeto do Código Penal, se aprovado, encerrará a era das cestas básicas e que veremos atrás das grades, cumprindo quatro, seis e até dez anos de prisão, o autor da prática de maus-tratos, dentre outras deduções jurídicas que passam longe da realidade.
Em caso de maus-tratos, não haverá processo, nem prisão, e o autor da prática se livrará sem que sua responsabilidade pelo delito venha a ser discutida, ou registrada em antecedentes criminais. Só responderá a processo o agente que dê causa à mutilação, lesão grave permanente ou morte do animal, ou que promova ou participe de luta entre animais, ficando reservada a essa última, apenas, uma remota probabilidade de prisão.
Relembre-se que, por força da Lei Federal nº 9.099/95, atualmente, o autor do delito de maus-tratos é beneficiado pela transação penal, que consiste na imediata aplicação de uma pena restritiva de direitos (prestação pecuniária, prestação de serviço, limitação de fim de semana etc), desde que presentes os requisitos legais. Muito embora a lei enuncie que o benefício da transação penal não será concedido se os antecedentes, a conduta social, a personalidade do agente e os motivos e circunstâncias do crime não indicarem ser suficiente a adoção dessa medida, sabe-se que a transação penal é efetivada, sistematicamente, por mais horrendo que tenha sido o fato praticado pelo agente. Até os dias de hoje, há notícia de um só caso no Sul, em que o benefício foi negado.
Se aprovada a redação sugerida pela comissão de juristas, nos casos de maus-tratos, teremos a substituição da atual transação penal por uma transação processual denominada suspensão condicional do processo, também conhecida por sursis processual, prevista no art.89 da Lei nº9099/95, aplicada a todas as infrações penais que possuam pena mínima cominada igual ou inferior a um ano, desde que o acusado não esteja sendo processado, ou que já tenha sido condenado por outro crime, dentro de um período de cinco anos.
Ao oferecer a denúncia, o Ministério Público propõe a suspensão do processo, por dois a quatro anos, período de prova em que o acusado submete-se ao cumprimento de algumas condições como reparação do dano, se possível; comparecimento mensal a juízo, proibição de frequentar certos lugares e de ausentar-se da comarca (não há mecanismo de fiscalização para essas duas últimas).
Após o decurso do prazo de dois a quatro anos, desde que as condições impostas tenham sido cumpridas, decreta-se a extinção da punibilidade do agente, sem discussão de sua responsabilidade pelo delito e sem anotação em seus antecedentes criminais, sendo possível, inclusive, a concessão de novo benefício, já que o acusado permanecerá primário.
Se a prática de maus-tratos resultar em morte, mutilação ou lesão grave permanente, será aplicada uma causa de aumento de pena, que elevará o limite mínimo da pena de um ano cominada em abstrato, impedindo, assim, a suspensão do processo.
Mesmo nesse caso, a possibilidade de prisão não se verifica. Conforme estabelece o artigo 44, inciso I, do Código Penal, a pena privativa de liberdade (prisão) igual ou inferior a quatro anos será substituída por uma pena restritiva de direitos (prestação pecuniária, perda de bens ou valores, prestação de serviço, limitação de fim de semana, interdição temporária de direitos).
Refere-se o Código Penal à pena concretamente aplicada (imposta por sentença), e não à pena cominada em abstrato (prevista no texto da lei).
Por razões de política criminal, a pena sempre é fixada no mínimo, o que torna muito remota a possibilidade de prisão, até nos casos de luta entre animais.
Conclui-se, portanto, que a pena restritiva de direitos, atualmente efetivada de forma imediata na transação penal, continuará a ser aplicada, ao final de um processo, e apenas aos gravíssimos casos de maus-tratos de que resulte morte, mutilação ou lesão grave permanente, pois em caso de maus-tratos sem o resultado, morte, mutilação e lesão grave permanente, o processo será suspenso, sem maiores consequências.
Ao texto original da Lei dos Crimes Ambientais, o anteprojeto fez algumas inserções e uma supressão.
Inseriram três dispositivos que trazem três novos tipos penais (crimes) extraídos do projeto de lei federal nº2833/11, já apresentado pelo Deputado Federal Ricardo Trípoli, elaborado com o apoio técnico da UIPA- União Internacional Protetora dos Animais- em parceria com a assessoria jurídica do parlamentar, e que tipificam (tornam crime) a luta entre animais, o abandono e a omissão de assistência ou de socorro a animal em perigo.
E vozes não faltam a proclamar que a supressão da palavra “ferir” em nada importa, por ser redundante, o que não procede, pois a permanência desse verbo é de extrema relevância para o tipo penal do artigo 32.
A questão não é provar que ferir um animal constitui maus-tratos, e sim demonstrar que é possível submeter a maus-tratos sem ferir.
Fato é que a maioria esmagadora das práticas de maus-tratos não provocam lesão e ferimentos. É o caso dos rodeios, do confinamento, da criação intensiva, dos cães acorrentados e sem abrigo. As autoridades, entretanto, insistem na existência de lesão como condição para a ocorrência do crime de maus-tratos.
Como a lei não contém palavras inúteis, a existência do verbo “ferir” tem sido um forte argumento para demonstrar que as condutas de “abuso” e “maus-tratos” podem se consumar, independentemente, da ocorrência de lesão, imprescindível apenas às modalidades “ferir” e “mutilar”.
Se a lesão fosse condição essencial à consumação do crime de maus-tratos, não haveria a necessidade da existência do verbo (núcleo do tipo) “ferir”; haveria apenas o tipo “maus-tratos”. Se uma prática compreendesse a outra, não haveria a necessidade de o artigo 32 contemplar as duas práticas (a de maltratar e a de ferir). Se as duas fazem parte do tipo penal é porque as duas constituem condutas diversas e independentes. Logo, é possível maltratar sem ferir.
Já se antevê um prejuízo à norma punitiva do artigo 32, que decerto, não sairá ileso do trâmite por duas casas legislativas repletas de ruralistas.
A comunidade científica tentará valer-se da ocasião para suprimir o parágrafo primeiro do artigo 32, relativo à experiência dolorosa ou cruel para fins didáticos ou científicos. Sem falar nos defensores dos rodeios e vaquejadas, que poderão fazer incluir excludentes de ilicitude, visando legitimar práticas desse gênero.
Num momento em que o país estarrecia com assombrosos casos de crueldade com animais, entidades e ativistas foram alarmados por um movimento virtual, que anunciava, com toda veemência e nenhuma fonte, a descriminalização da prática de maus-tratos, pretensão que nunca existiu como declararam Luis Carlos Gonçalves, relator da reforma do Código Penal e Luíza Eluf, integrante da comissão responsável pelos trabalhos, em entrevistas concedidas à ativista Sheila Moura (www.ogritodobicho).
Após o desmentido do boato, o discurso foi alterado.
A mobilização já não se fazia vital e urgente pelo risco de ser a redação do artigo 32 alterada, mas justamente pela necessidade de alterar a sua redação! Era a imperdível oportunidade de alforriar os animais para apenar seus algozes com pena de prisão, e não com meras cestas básicas. Afinal, “quem sabe faz a hora, não espera acontecer.”
Pressionada, a comissão de juristas se dispôs a proceder às alterações, mas o resultado foi bem diverso do divulgado.
Em suma, restaram frustradas as expectativas incutidas nas milhares de pessoas conclamadas a marchar em defesa dos animais.
Vê-se que o avanço anunciado, aos quatro ventos alardeado, na prática, não existe e não se cumpre.
Despreparo ou preparo eleitoral?
Esperava-se mais de quem arrogou-se no direito de falar e agir em nome do Movimento de Proteção Animal.



Vanice Teixeira Orlandi é advogada, presidente da centenária UIPA, União Internacional Protetora dos Animais

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