terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Animais x condomínios - Desmandos extrapolam os limites das leis e regras.



Pouco posso dizer sobre o referido 'caso da Docinho', não me foi oferecida vista aos autos, nem mesmo fui procurada por nenhuma das partes envolvidas na lide com intuito de emitir parecer técnico sobre os fatos.
Posso considerar apenas os dados referentes a minha experiência profissional, casuística particular e a de colegas atuantes em medicina veterinária legal.
Atuo na especialidade desde 1997, porém predominantemente no ensino acadêmico e estudo/registro dos fenômenos de violência e suas conexões.
Talvez em função do meu tema estar mais vinculado às forças policiais, quase nunca atuei em processos civis, onde a questão é tratada com outro enquadramento jurídico.

Observo entretanto um certo 'empoderamento' dessas associações de moradores, amparadas por administradoras de condomínios e seus sindicatos, assim como no interesse de especulação de construtoras, incorporadoras e até agências de financiamento bancário, quando geram um processo de gentrificação* dos condomínios (tanto verticais, quanto horizontais).
Visivelmente estão conseguindo extrapolar as regras locais sobre as áreas comuns, na forma de adquirir verdadeiro efeito de poder paralelo, sobrepondo-se quase sempre até ao ordenamento jurídico comum das legislações municipais, estaduais ou federais.

Especialmente em seus parâmetros restritivos, em especial na parte que diz respeito à manutenção, circulação e permanência de animais. Pretendem regular não somente os espaços comuns, como aqueles privativos (a própria moradia do proprietário de lote ou fração de terreno).
Atingem diretamente o direito de propriedade, por serem os animais bens semoventes, e não objetos ilícitos.

Sua criação atende às necessidades humanas, seja em função da sua utilidade, como a guarda patrimonial, o esporte e entretenimento ou até mesmo na digna atividade de companhia.
Donde se conclui que a valoração da vida do animal não pode ser apenas mensurada pelo seu valor zoo técnico, ou seu custo, mas no valor intrínseco dos benefícios que trazem à vida de quem com eles interagem.

Não raro utilizam-se as associações de moradores, de práticas de coação e constrangimento nem mesmo muito civilizadas ou legítimas. Como no caso de algumas consultas que me fizeram.
Em vários condomínios os próprios 'agentes de segurança' (na verdade controladores de acesso ou porteiros/jardineiros terceirizados ou empregados) estavam(e ainda estão) exercendo o controle populacional de animais, quer seja com o uso de produtos tóxicos - ditos 'venenos', como com armas de fogo e outros recursos (incêndio, alagamento, etc); facilitando fugas de animais restritos ao domicílio e promovendo verdadeiras situações de pânico infundado sobre os outros moradores: existe até mesmo um 'laudo'(obviamente não oficial) circulando por associações no entorno da grande São Paulo, assegurando que alguns animais são altamente perigosos pela possibilidade de transmissão de gripes 'mortais', do tipo H1N1.

As ações levam o codinome de 'controle de pragas', usualmente estão vinculadas a empresas não confiáveis ou irregulares atuantes no mercado especificamente com esta finalidade.
A 'limpeza' não fica restrita a ratos, roedores, pombos ou insetos, mas também aos animais domésticos em situação de rua, semi domiciliados, ferais e pasmem, até mesmo animais silvestres!
Parece ter virado 'mania' o uso de produtos praguicidas nas áreas verdes de jardins, ou de reserva de mata nativa (particularmente nos empreendimentos horizontais), causando dizimação de peixes dos mananciais e de um grande número de aves, especialmente algumas silvestres que utilizam estes redutos de mata em suas rotas migratórias.

Inclusive, por causarem perturbação do tipo ruído, derrubam-se palmeiras de coquinho, árvores frutíferas e outras espécies silvestres da mata nativa que servem de abrigo a estas aves. Até mesmo ações específicas de 'caça aos sapos' e outros animais rasteiros são acobertadas pela pretensa captura de cobras e aranhas peçonhentas.

Fui informada e há testemunhos de que em vários condomínios (em verdade, na sua maioria falsos condomínios) da minha região muitas aves (às centenas) foram doadas a uma certa figura política conhecida, ao modo de resgate, sendo levadas literalmente em caminhões de mudança a algum pretenso santuário particular...(em tramite desconhecido oficialmente pelas autoridades ambientais) Tudo isso para tentar demonstrar que no meu entendimento esses ganhos de causa contrários à posse de animais simplesmente não são só um precedente isolado, mas um modo operandi de fazer vingar interesses econômicos específicos, e fazer valer o que se pretende entender por consenso comum: que no interesse da coletividade, não haveria interesse pela presença dos animais.

Em verdade pretende-se com isso facilitar a manutenção e manejo dos espaços condominiais e justificar alguns salários e custos com 'segurança', por exemplo. Retiram-se os animais do domicílio mas contratam-se empresas terceirizadas com cães de aluguel. Não há outra lógica nisso.

Nas condições do meu trabalho como perita, fundamenta-se o direito à remoção do animal com base no art. 42 da LCP - contravenção penal de Perturbação do Trabalho ou do Sossego Alheio, conforme segue e no destaque : Art. 42.
Perturbar alguém o trabalho ou o sossego alheios:
I – com gritaria ou algazarra;
II – exercendo profissão incômoda ou ruidosa, em desacordo com as prescrições legais;
III – abusando de instrumentos sonoros ou sinais acústicos;
IV – PROVOCANDO OU NÃO PROCURANDO IMPEDIR BARULHO PRODUZIDO POR ANIMAL DE QUE TEM A GUARDA:

Como prova da existência dos fatos basta arrolar testemunhas, sequer cabendo laudo pericial(por se tratar de contravenção). Nem mesmo perícia de constatação e registro de barulho ou perícia comportamental por parte da perícia especializada, como acontece em alguns países outros com legislação equivalente.
Aliás, a constatação de incomodo como colocado na contravenção independe do número, porte, raça ou espécie de animal. A jurisprudência a favor da remoção costuma elencar DIREITO DE VIZINHANÇA – MAU USO DE PROPRIEDADE VIZINHA – PERTURBAÇÃO À SEGURANÇA E AO SOSSEGO – INOBSERVÂNCIA DAS REGRAS DE VIZINHANÇA. 

Alguns municípios possuem regulação específica referente a POLUIÇÃO SONORA E LEI DO SILÊNCIO, que em muitos casos também vem sendo aplicados sobre e contra a posse de animais. Mas como entender o caso de alguns proprietários, pressionados a se desfazer de seus animais, até mesmo idosos, para justificar o cumprimento das convenções, quando em muitos casos os animais inclusive são preexistentes aos queixosos ou ' detentores ' do regramento local?

Texto de autoria da Dra. Heidi Ponge-Ferreira 
Médica Veterinária atuante em Medicina Veterinária Legal e Medicina do Coletivo. Trabalho com perícias especialmente com enfoque em colecionismo/acumuladores ou fenômenos de violência (maus-tratos).
Email para contato: h.ponge@gmail.com 

 
*Gentrificação

Chama-se gentrificação (do inglês gentrification) o fenômeno que afeta uma região ou bairro pela alteração das dinâmicas da composição do local, tal como novos pontos comerciais ou construção de novos edifícios, valorizando a região e afetando a população de baixa renda local. Tal valorização é seguida de um aumento de custos de bens e serviços, dificultando a permanência de antigos moradores de renda insuficiente para sua manutenção no local cuja realidade foi alterada.[1][2].

Fonte: Wikipedia

Nenhum comentário:

Postar um comentário