Os testes de toxicidade são uma etapa importante no processo de
desenvolvimento de um remédio porque comprovam ou não a sua eficácia,
antes de serem testados em humanos. Atualmente, os laboratórios locais
terceirizam esse serviço em outros países, sobretudo nos EUA. Empresas
brasileiras e universidades federais do país até fazem esse trabalho,
mas os registros desses medicamentos não têm reconhecimento
internacional.
Localizado em Florianópolis, em uma área de 7 mil m2
dentro do Parque de Inovação Sapiens, o centro faz parte de um programa
maior do governo federal - a Rede de Ensaios Pré-Clínicos, criada para
fomentar a cadeia de desenvolvimento de um medicamento, desde a pesquisa
básica (identificação de moléculas), fases pré-clínicas (testes em
animais) e clínicas (em humanos) até a sua comercialização. A
inauguração desta primeira unidade é vista como crucial pelo governo
federal: apesar de ser um dos dez maiores mercados consumidores de
medicamentos do mundo, o Brasil ainda é dependente da importação de
farmoquímicos e medicamentos acabados.
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Localização do futuro Centro de Farmacologia Pré Clinica - foto site SAPIENS PARQUE |
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É também um desdobramento da estratégia do governo de construção de
uma indústria farmacêutica nacional forte, iniciada no ano passado com a
criação da Bionovis (formada por Aché, Hypermarcas, EMS e União
Química) e a Orygen Biotecnologia (Biolab, Eurofarma e Cristália), que
receberão aportes federais para desenvolver no próximo triênio sete
produtos biossimilares - a versão genérica de medicamentos biológicos.
Segundo fontes ouvidas pelo
Valor, a falta de um
laboratório para testes pré-clínicos referendado internacionalmente já
trouxe prejuízos ao país. O Acheflan, pomada anti-inflamatória do
laboratório Aché, é um exemplo de medicamento local de sucesso que não
obteve registro global pela ausência de testes de toxicidade no país
reconhecidos no exterior. Após desenhar a indústria, o movimento
seguinte esperado era montar a ponta inicial da cadeia.
"O centro é resultado da constatação de que no Brasil não existem
instituições capazes de realizar ensaios pré-clínicos que atendam as
exigências de organizações reguladoras internacionais, e isso é um
importante gargalo na inovação no setor de fármacos e medicamentos no
Brasil", diz João Calixto, coordenador do centro e professor do
Departamento de Farmacologia da Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC). "Será uma referência na América Latina".
A expectativa é que a realização desses testes no Brasil reduza entre
30% a 40% os custos de fabricação de remédios no país, segundo fontes
ouvidas pelo
Valor. Não é pouca coisa. Os estudos
pré-clínicos respondem por cerca de 10% a 15%, dependendo da sua
complexidade, do US$ 1 bilhão em geral investido pela indústria para
colocar uma nova droga na prateleira.
A estratégia de desenvolver tecnologia nacional foi costurada pelos
Ministérios de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e da Saúde, em
parceria com a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e com o Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Outras quatro
unidades fazem parte do programa: o Núcleo de Pesquisa e Desenvolvimento
de Medicamentos, com a Universidade Federal do Ceará; o Centro de
Desenvolvimento Tecnológico em Saúde, com a Fiocruz (RJ) (que devem ser
inaugurados nos próximos meses); o Instituto Royal, em São Roque (SP); e
o Laboratório Nacional de Biociências do Centro Nacional de Pesquisa em
Energia e Materiais, em Campinas, os últimos dois já em operação.
Em Florianópolis estarão disponíveis para pesquisa científica 20
laboratórios e dois biotérios - local onde são criados os animais usados
como cobaias. O primeiro, com inauguração prevista até abril, será
destinado a roedores - ratos e camundongos, os primeiros na linha de
sucessão de testes. O segundo, com previsão de abertura no fim deste
ano, abrigará cães, coelhos, porcos e primatas, animais com fisiologia
mais próxima à do homem e que, por esse motivo, são utilizados após os
roedores no refinamento da pequisa por provas de eficiência químic
Sua missão será ajudar a produção dos chamados medicamentos complexos - drogas contra câncer e artrite reumatoide, por exemplo.
Para colocar o projeto em prática, o centro está finalizando a compra
de 20 a 30 casais de roedores, a um custo previsto de US$ 20 mil, que
servirão como matrizes para os experimentos. A partir desses casais,
será feita a reprodução e criação da colônia, que idealmente chegará a
50 mil ratos e 80 mil camundongos por ano. "São roedores de linhagens
qualificadas, criados em condições sanitárias controladas, sem contato
com vírus e bactérias", afirma Calixto. Segundo ele, os animais de porte
maior serão adquiridos no mercado interno e importados, conforme a
demanda da indústria para testes de novos medicamentos.
Além desses animais, a unidade negocia também a parceria com a
farmacêutica americana Pfizer, que deverá prover ratos transgênicos
doentes - modificados geneticamente para que já nasçam com doenças
desejadas pela indústria, como hipertensão, colesterol alto e diabetes, a
fim de pesquisa.
O professor João Calixto será o coordenador do centro de farmacologia de SC
Como a mão de obra no setor farmacêutico nacional é escassa e falta
expertise no desenvolvimento de produtos, o centro de Santa Catarina
também planeja uma parceria de capacitação com a farmacêutica francesa
Sanofi. Segundo Jaderson Lima, diretor de alianças médicas e científicas
da Sanofi Brasil, os profissionais serão transferidos para as unidades
da multinacional em Cambridge (EUA) e Frankfurt, onde terão oportunidade
de acompanhar processos pré-clínicos e biológicos por um ano. O acordo
prevê o treinamento de até oito profissionais pós-doutorados.
Os testes em animais são uma prática consolidada mundialmente na
indústria, que os considera indispensáveis no processo de
desenvolvimento de medicamentos. Mas nem por isso estão longe de
polêmicas. Para grupos de defesa animal, tratam-se de crimes cometidos
por maus tratos, apesar da obrigatoriedade de comitês de ética para
supervisionar os procedimentos, e sem necessidade.
Os ratos são utilizados na primeira etapa dos ensaios pré-clínicos
"Já existem inúmeros métodos eficientes e eficazes que podem e já
estão sendo usados nessa área. Mas os animais continuam sendo usados
porque são mais baratos", afirma Carlos Rosolen, do Projeto Esperança
Animal (PEA), o equivalente brasileiro à poderosa People for the Ethic
Treatment of Animals (Peta), dos EUA. "Quando nos referimos a animais,
partimos do pressuposto que são vidas, sentem dor, medo e tudo que
podemos sentir."
O debate em torno dos animais como cobaia é mais acalorado quando o
produto não é um medicamento que possa salvar vidas - mas um rímel ou
xampu novo. Na indústria de cosméticos, o movimento contra o uso de
animais em testes teve como seu expoente a rede britânica The Body Shop.
No Brasil, a Natura anunciou em 2006 que seguiria igual caminho. A fim
de garantir a eficácia e a segurança dos produtos, a empresa diz se
valer de modelos computacionais, pesquisa e revisão dos dados da
literatura científica e testes in vitro.
No setor farmacêutico, uma mudança nesse sentido não deve ser rápida.
"Por algumas décadas a gente ainda vai usar tudo o que está aqui
[animais]", diz Calixto. "Ou alguém vai testar um remédio pela primeira
vez no próprio filho?"
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No vídeo abaixo também disponibilizado pelo Valor Economico um resumo da matéria e uma referencia aos estudantes de veterinária da Anhembi Morumbi treinando em um cão simulador.